Pedro A. Azevedo Lustosa*
Ao longo dos anos, o Tribunal de Conta da União (TCU) construiu jurisprudência no sentido de que o Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (SINAPI) e o Sistema de Custos Referenciais de Obras (SICRO) deveriam ser utilizados como os referenciais das regras e dos critérios para elaboração de orçamentos de referência de obras e serviços de engenharia pela Administração Pública.
Tal entendimento encontra fundamento no Decreto nº 7.983/2013, o qual estabelece que o custo global de referência de obras e serviços de engenharia devem observar os custos unitários de referência do SINAPI (art. 3º), salvo nos casos envolvendo a infraestrutura de transporte, em que devem ser considerados os custos unitários de referência do SICRO (art. 4º).
A edição desse decreto em 2013 veio justamente consolidar em normativo geral disposições que já vinham sendo incluídas há muito nas Leis de Diretrizes Orçamentárias. Quanto ao SINAPI, sua utilização obrigatória para aferição dos custos unitários de materiais e serviços de obras executadas com recursos dos orçamentos da União Federal se deu a partir da LDO de 2003 (art. 93 da Lei nº 10.524/2002), enquanto a utilização do SICRO como referência é cogente desde a LDO de 2010 no caso do SICRO (art. 112 da Lei nº 12.017/2009).
Não obstante, desde antes dos referidos normativos, o TCU defendia a utilização desses referenciais como parâmetros para a quantificação de superfaturamento em processos de Tomada de Contas Especial (TCE). Seriam os exemplo da Decisão nº 411/1999-Plenário, na qual houve determinação à Caixa Econômica Federal para que avaliasse a possibilidade de se adotar exclusivamente o SINAPI para a avaliação dos custos de imóveis financiados através do banco; e da Decisão nº 879/2001-Plenário, em que a unidade técnica teria utilizado o SICRO como um dos referenciais para aferição dos preços de mercado de serviços nas obras do Aeroporto Internacional de Salvador.
Foi no contraponto de todas essas considerações que decisão recente do Tribunal de Contas da União, de 20 de maio de 2020, entendeu que o SINAPI e o SICRO não poderiam ser aplicados em momento anterior à sua inclusão nas Leis de Diretrizes Orçamentárias para quantificação de superfaturamento. Trata-se do Acórdão nº 1.254/2020-Plenário,[3] proferido em TCE com o objetivo de promover a recomposição do débito decorrente de contrato para a implantação do Perímetro de Irrigação Propertins, no estado do Tocantins.
Nessa oportunidade, o Tribunal concluiu que não seria possível imputar débito, e consequentemente aplicar multas a responsáveis, pela não adoção de referenciais de preços que não eram cogentes à época dos fatos. Assim o fez com fundamento no artigo 24 da LINDB, que dispõe que:
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público
Com o dispositivo, o legislador buscou impedir situações em que atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativas produzidos segundo as orientações gerais da época de sua criação fossem revistos com base em mudança posterior da interpretação a respeito do Direito vigente.
Retomando ao Acórdão nº 1.254/2020-Plenário, observa-se que o empreendimento consistiria em obra de barragem para irrigação, cuja natureza traria a necessidade de se utilizar diversos referenciais de preços para obras civis, numa época em que as tabelas do SINAPI e do SICRO ainda não eram legalmente cogentes. Isto é, o projeto básico da obra em questão teria sido elaborado em 2000, quando nenhum desses referenciais estava previsto em lei.
Apesar dos alertas dos votos vencidos no sentido de que a impossibilidade de quantificação de débitos por parâmetros não previstos em lei “lançaria por terra toda a jurisprudência do TCU” acerca da utilização desses referenciais antes de suas inclusões nas LDOs e de que essa utilização não afrontaria ao art. 24 da LINDB, uma vez que o SINAPI e o SICRO já eram utilizados como parâmetro de quantificação de superfaturamento na jurisprudência majoritária do TCU à época da elaboração do projeto básico, a decisão da maioria foi pela desconstituição do débito por impossibilidade de utilização dos referenciais de preço antes de sua inclusão em lei.
Dada a fragilidade da maioria e o fato de que a decisão em recurso reverteu o entendimento anteriormente pacífico no Tribunal, o TCU deixa em aberto a questão sobre a partir de quando os referenciais do SINAPI e do SICRO devem ser utilizados para quantificação de superfaturamento – o que pode abrir espaço para questionamento em processos ainda em trâmite com obras anteriores a 2010. Assim, resta acompanhar os futuros julgados do TCU para identificar se será confirmada a tese levantada pelo Acórdão nº 1.254/2020-Plenário, ou se o Tribunal reafirmará sua jurisprudência no sentido de que o SINAPI e SICRO deveriam ser empregados mesmo antes de suas inclusões nas LDOs de 2003 e 2010, respectivamente.
*Pedro A. Azevedo Lustosa é pesquisador do Observatório do TCU da FGV Direito SP + SBDP. Bacharel em Direito pela UnB. Advogado do escritório Piquet, Magaldi e Guedes Advogados.
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