Por Washington Luiz
BRASÍLIA — Associações que representam membros do Ministério Público e da magistratura avaliam que a proposta em análise pelo governo para regulamentar os acordos de leniência deve reduzir a transparência e dificultar o combate à corrupção. Pela minuta do projeto, à qual O GLOBO teve acesso, o Ministério Público Federal (MPF) deixaria de participar das negociações e os poderes ficariam concentrados na Controladoria-Geral da União (CGU) e na Advocacia-Geral da União (AGU), subordinados ao presidente Jair Bolsonaro.
Para o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Fábio da Nóbrega, a proposta viola a Constituição ao priorizar os órgãos de controle interno e não reconhecer o papel do Ministério Público nas investigações. Nóbrega também considera que a mudança pode prejudicar medidas anticorrupção.
— Além de ser uma instituição independente dos governos, o Ministério Público é a única com titularidade para propor ações penais decorrentes dos mesmos fatos apurados e também concentra, embora sem possuir titularidade exclusiva, mais de 90 por cento das iniciativas nas ações de improbidade propostas. Em suma, a proposta não atende ao interesse público, por não produzir os efeitos de segurança jurídica desejados, além de enfraquecer os esforços do país contra a corrupção — afirma.
De acordo com as novas regras sugeridas, procuradores responsáveis por investigar os crimes de uma empresa podem ficar fora da análise de quais fatos criminosos essa empresa está confessando no acordo. “Visando a incrementar-se a segurança jurídica e o trabalho integrado e coordenado das instituições, a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União conduzirão a negociação e a celebração dos acordos de leniência nos termos da lei nº 12.846, de 2013”, diz o texto.
Eduardo Brandão, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), também vê o projeto com cautela. Apesar de defender a atuação da CGU e da AGU, ele teme que as alterações coloquem em risco a transparência do processo. Para Brandão, o assunto precisa ser discutido pelo Congresso.
— Da forma como é hoje, passando por todas as instituições, é mais tranquilo. Se você tirar do Ministério Público essa participação, corre-se o risco de não ter a mesma transparência que se tem hoje. Mas ressalto: a CGU e a AGU fazem um excelente trabalho também. Eu acho que cabe ao Congresso. O melhor local para se debater é realmente o Congresso — disse.
A ideia do governo é criar um “balcão único” na negociação de acordos de leniência. Atualmente, uma empresa precisa negociar com diversas instituições diferentes e fica vulnerável a sanções caso não consiga fechar acordo com todas. Por isso, a proposta é bem recebida por advogados que acreditam que a alteração tornará o processo mais fácil.
— A existência de um balcão único certamente aumentará a atratividade do programa de leniência para possíveis interessados. Atualmente, várias empresas que nos consultaram desistiram de seguir com a ideia da leniência, vislumbrando que não teriam a virada de página esperada com o acordo, pois precisariam continuar enfrentando processos em curso ou teriam de negociar mais de um acordo — explica Arthur Guedes, sócio do escritório Piquet, Magaldi e Guedes Advogados. Em 2019, o escritório assessorou a OAS na assinatura do acordo de leniência no valor de R$ 1,9 bi.
Ainda pela proposta, os acordos poderiam passar a ser assinados mesmo sem a manifestação do Tribunal de Contas da União (TCU). Com a intenção de evitar que o tribunal trave um acordo, o projeto estabelece que o órgão se manifeste em 90 dias. Caso não responda, AGU e CGU poderão assinar o documento.
Para a diretora da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), Lucieni Pereira, a mudança tornaria o TCU um órgão de “fazer cálculo”.
— O papel da advocacia publica é defender o gestor, o ministro de Estado, o presidente da República. A natureza intrínseca do órgão não é investigar nada. Vejo com muita ressalva essa proposta. Há uma tentativa de inverter os papeis e tornar o TCU um simples órgão de fazer cálculo — reclama.
Outra preocupação da ANTC é que o modelo em análise seja replicado nos estados e nos municípios e amplie o poder dos órgãos de controle locais. A entidade promete tentar barrar a iniciativa com o apoio de parlamentares.
Por se tratar de uma cooperação técnica, a regulamentação dos acordos de leniência não precisaria ser submetida ao Congresso Nacional. Bastaria que órgãos assinassem as mudanças para garantir que todos sigam os termos estabelecidos.
Porém, o senador Alesandro Vieira (Cidadania-SE) defende que o assunto precisa ser pautado e discutido por deputados e senadores.
— É mais uma peça que busca enfraquecer o Ministério Público e enfraquecer o combate à corrupção no Brasil. Acredito que vai ser um debate muito duro no Congresso. Infelizmente, esses grupos têm enraizamento nos três poderes. Estão tentando aproveitar o momento da pandemia para como dizia o ministro Ricardo Salles e “passar a boiada” no retrocesso à impunidade — afirmou.
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