Sem MPF em novo acordo, delação de empresas pode ser esvaziada no Brasil


| 11 de agosto / 2020

Por Clara Cerioni

As futuras delações premiadas de empresas no Brasil, tecnicamente chamadas de acordo de leniência, não devem mais contar com um ator que até hoje foi peça central desse tipo de negociação no país: o Ministério Público Federal (MPF).

A mudança faz parte de um acordo firmado na semana passada entre o poder Executivo — representado pelo Ministério da Justiça, a Controladoria Geral da União (CGU), a Advocacia Geral da União (AGU) — com o Judiciário, representado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

Todos os atores envolvidos assinaram o novo acordo, que prevê uma espécie de “balcão único” entre todos os entes para negociar as futuras delações de empresas. No ato da assinatura, o presidente do STF, Antonio Dias Toffoli, disse que a cooperação entre os órgãos é um meio de “evitar sobreposições e conflitos, antes que o desentendimento entre elas desencadeie a busca por soluções jurisdicionais”.

O atual procurador-geral da República, Augusto Aras, que é o cargo mais alto dentro da estrutura do MPF, não assinou o termo. Ele disse que ainda aguarda o parecer do setor que acompanha o assunto no MPF, a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão. Integrantes do grupo são contrários à proposta, alegando que o texto não prevê a participação de procuradores na negociação e, Aras, que enfrenta diversos reveses dentro do órgão, decidiu se abster de mais um conflito.

Na teoria, a ideia do “balcão único” de negociação poderia de fato facilitar as tratativas, já que as negociações seriam estabelecidas com todos os atores envolvidos (CGU, AGU, TCU e MPF), garantindo à empresa a possibilidade de ressarcir os cofres da União pelos crimes cometidos de uma só vez.

Mas na prática a história deve ser outra, segundo advogados consultados pela EXAME. Primeiro, porque as novas regras esvaziaram a participação do MPF, que tem um histórico de expertise em conduzir acordos de leniência.

A partir de agora, os procuradores não devem mais fazer parte desse tipo de negociação quando se tratar de pessoas jurídicas. Caberá ao órgão estabelecer as delações de pessoas físicas, cujas acusações não necessariamente estão vinculadas a um CNJP.

Em resumo, os acordos de leniência, previstos na Lei Anticorrupção de 2013, formalizam a admissão de crimes por parte de empresas e o compromisso delas de prestar informações que auxiliem em investigações, em sua maioria sobre corrupção e lavagem de dinheiro. A contrapartida é o alívio em eventuais sanções às empresas, sejam elas administrativas ou civis.

Hoje, no entanto, há um entrave nesse tipo de negociação, já que, em muitas ocasiões, há uma disputa entre órgãos para saber quem deve negociar um acordo com uma determinada empresa. Durante os anos mais ativos da Operação Lava Jato, empresários firmaram compromissos principalmente com o MPF, que foi um dos protagonistas na implementação desse tipo de resolução.

“Há seis anos, desde o início da Lava Jato, as empresas estão definhando, empregos estão sendo perdidos, porque você atinge a pessoa jurídica como um todo. Não a física que cometeu o delito”, explica o advogado Arthur Guedes, responsável pela negociação de R$ 1,9 bilhão da OAS com a CGU e AGU firmada no ano passado.

Os advogados apontam ainda o fato de que, ao mesmo tempo que negociar de uma só vez pode ser positivo, conseguir fazer com que todas as partes envolvidas concordem com um só acordo que atenda a todas as expectativas não será uma tarefa fácil, ainda mais no Brasil, onde os órgãos lidam com competências diversas.

“A partir de agora a CGU, a AGU, o Ministério da Justiça e o TCU, que já têm suas competências diárias determinadas, terão ainda mais uma função que não é nada simples. O MPF tinha vasta experiência para realização desses acordos. Todas as negociações devem ser dificultadas, o que vai tornar o processo mais lento, mais burocrático e com mais chances de impunidade”, diz Vera Chemim, advogada constitucional e mestre em direito público administrativo pela Fundação Getúlio Vargas.

Risco de parcialidade

Além de aumentar o tempo das tratativas, com as novas regras os acordos de leniência podem se tornar parciais e serem fechados segundo interesses do poder Executivo, na análise dos advogados ouvidos pela reportagem.

Isso porque, até agora, o MPF era o único órgão independente da estrutura e, apesar de algumas contestações recentes envolvendo a imparcialidade de procuradores da Lava Jato, ele tem um histórico consolidado de negociar acordos de leniência..

Tanto a AGU quanto a CGU são controladas por ministro chefes de estado, escolhidos (e demitidos) pelo presidente da República. Já a PGR, apesar de estar na estrutura do Executivo, teoricamente é chefiada por um procurador de carreira escolhido por meio de lista tríplice.

“Durante a Lava Jato, acordos feitos pelo MPF às vezes encontravam resistência na CGU. O governo pode ter interesses em brecar ou não uma negociação que pode eventualmente o prejudicar. Imagine uma situação hipotética em que o âmago do governo está envolvido em um acordo de leniência e o ‘balcão único’ é formado por AGU, CGU e Ministério da Justiça”, diz o advogado Arthur Guedes.

Esse novo modelo, na visão de Vera Chemim, é um passo para traz que no combate à corrupção no Brasil. “Vamos prejudicar princípios constitucionais, principalmente o da eficiência, por conta da demora que esses acordos levarão para serem firmados. Também arrisca a moralidade administrativa já que não sabemos o que vai acontecer durante essas negociações”, diz.

(Com informações do Estadão Conteúdo)

Matéria publicada na Exame.