Por Arthur Guedes
O Supremo Tribunal Federal enfrentará uma questão jurídica relevante em seu plenário virtual nos próximos dias. Trata-se do Tema 899, no qual se discute a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisões do Tribunal de Contas da União. Os ministros terão um prazo entre esta sexta-feira e o dia 16 para tomar uma decisão.
Durante muitos anos, pairou grande dúvida sobre a extensão da ressalva feita no artigo 37 § 5º da Constituição, segundo o qual: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”
Em um primeiro momento, doutrina e jurisprudência inclinaram-se por extrair da norma constitucional a imprescritibilidade das ações de ressarcimento. Há, inclusive, precedente do Supremo sustentando a imprescritibilidade de um débito imposto pelo Tribunal de Contas da União (MS 26.210-9/DF, de 2008).
Esse é o entendimento que prevalece no Tribunal de Contas da União, já que a imprescritibilidade das ações de ressarcimento é matéria por lá pacificada, estando inclusive cristalizada na Súmula TCU 282 .
Não obstante, essa primeira interpretação do texto constitucional tem evoluído e a ideia da imprescritibilidade está perdendo força diante da valorização da segurança jurídica. Na dicotomia de tais princípios, ganha força a ideia de que a ressalva feita na Constituição não poderia ter consagrado uma imprescritibilidade absoluta das ações de ressarcimento ao erário.
O próprio Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, deu claras indicações de que essa questão jurídica merecia uma análise mais aprofundada e, nesse sentido, reconheceu três temas de repercussão geral relacionados ao assunto. Os Temas 666, 897 e o próprio 899, que está em pauta, representam facetas da mesma discussão envolvendo a prescritibilidade do ressarcimento ao erário, analisando a questão, respectivamente, sob os prismas do ilícito civil e dos atos de improbidade administrativa e perante o Tribunal de Contas da União.
As decisões proferidas nos Temas já enfrentados – 666 e 897 – indicam uma tendência em restringir a imprescritibilidade das ações de ressarcimento, exatamente por prestigiarem a segurança jurídica e a pacificação das relações em oposição à possibilidade de o Estado buscar o seu ressarcimento a qualquer tempo.
Ao julgar a prescritibilidade dos ilícitos civis, em 3 de fevereiro de 2016, o Supremo firmou o entendimento de que “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”. Por sua vez, ao relatar a prescritibilidade das ações fundadas em atos de improbidade administrativa, em 8 de agosto de 2018, o STF firmou, por maioria, tese no sentido de que “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”. Portanto, atualmente já não há mais espaço para que se sustente uma imprescritibilidade genérica em relação às ações de ressarcimento do erário.
Com a premissa de que haverá coerência com os enunciados proferidos nos temas anteriores, pode-se vislumbrar o estabelecimento da prescritibilidade das ações de ressarcimento perante o Tribunal de Contas da União no julgamento do Tema 899.
Nos termos dos entendimentos já exarados, para que um débito seja considerado imprescritível e, assim, possa ser cobrado a qualquer tempo, há dois ônus impostos ao acusador. Há de se provar, em primeiro lugar, a existência de prejuízo e, em segundo, que ele derive de um ato doloso. Esse estreito caminho, no entanto, é incompatível com o rito processual para a imputação de débitos perante os Tribunais de Contas.
Perante os Tribunais de Contas prevalece o entendimento de que cabe ao gestor dos recursos públicos comprovar a sua boa utilização. Desta forma, opera-se uma espécie de inversão do ônus da prova. Incumbe ao Tribunal de Contas da União imputar o débito e ao gestor e ao particular envolvidos demonstrar a sua inexistência, já que é seu o ônus de comprovar a boa gestão do recurso público.
Além disso, o aspecto volitivo não é avaliado para a definição de existência de débito. O débito, ao contrário, é materializado e imposto mediante a simples discordância fundamentada do Tribunal de Contas em relação ao valor pactuado nos contratos fiscalizados.
Essa inversão do ônus de demonstrar a existência de prejuízo, ao ser conciliada com a inexistência de prazo para a instauração de processos e imputação de débitos, cria uma espécie de antítese de Estado Democrático de Direito ao fulminar por completo dois de seus pilares: a segurança jurídica e o contraditório. Afinal, a qualquer tempo o Tribunal de Contas da União pode instaurar processos para o ressarcimento do erário, transferindo ao acusado o ônus de demonstrar a inexistência de prejuízo ao erário por atos e fatos há muito perdidos no tempo.
Cria-se uma situação esdrúxula em que, quanto mais moroso e ineficiente for o Tribunal de Contas, maiores serão as chances de imputar um ressarcimento ao erário, já que a instauração tardia funcionará não contra a imputação do débito, mas de forma a dificultar ou mesmo inviabilizar o exercício da ampla defesa e do contraditório. Tal situação demonstra o descompasso do entendimento que preconiza a imprescritibilidade como princípio da eficiência, devidamente consagrado em nossa Constituição como um direito dos cidadãos.
É hora, portanto, de o Supremo Tribunal Federal estabelecer um limite temporal para as ações de ressarcimento ao erário por parte dos Tribunais de Contas e, assim, mitigar essa violação constante aos princípios da segurança jurídica, do contraditório, da ampla defesa e da eficiência. Para tanto, compatibilizando os prazos estabelecidos em diversas normas de direito público, o prazo prescricional para a imputação de débitos perante o Tribunal de Contas da União deveria ser de 5 (cinco) anos.
Findo tal prazo, o erário não estaria desguarnecido. Consoante o entendimento externado ao julgar o Tema 897, na via judicial ainda seria possível cobrar prejuízos ao erário decorrentes de atos dolosos de improbidade administrativa. O ônus ao Estado, em contrapartida à imprescritibilidade, seria demonstrar a existência de prejuízo e que ele decorre de um ato doloso de improbidade administrativa.
De outro lado, as relações jurídicas ordinárias, em que não há dolo envolvido, estariam pacificadas após o transcurso de cinco anos, assegurando uma maior segurança jurídica aos gestores e àqueles que possuem contratos com a União.
Certamente, trata-se de uma solução jurídica mais equilibrada e que ajuda na construção de uma relação mais justa entre particulares e o Poder Público. A mitigação do risco da imputação de débitos a qualquer tempo por situações cotidianas em contratos administrativos é uma forma significativa de reduzir riscos e, assim, os valores solicitados pela iniciativa privada para contratar com o Poder Público.
Ao fim, assegurar a prescritibilidade de tais relações, antes de ser um problema, tende a ser um ganho para o país. Ajusta-se a máquina estatal para que eventuais débitos sejam discutidos perante o Tribunal de Contas da União no prazo razoável de cinco anos, assegurando-se assim um sistema fiscalizatório eficiente, como preconiza a Constituição, e a segurança jurídica estabelecida tende a atrair novos players e viabilizar melhores negócios ao Poder Público. Ganha a sociedade.
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