TCU e o caso das golden shares


Destaques e Notícias | 19 de fevereiro / 2020

O instrumento da consulta, previsto pelo artigo 1º, XVII, da Lei Orgânica do TCU, serve para que a Corte de Contas decida, em abstrato, qual seria a melhor interpretação sobre normas legais e infralegais. Cuida-se de peculiar competência de caráter normativo do órgão de controle, que tem por objetivo gerar maior segurança jurídica na aplicação de leis e regulamentos.

Dado seu caráter excepcional, o Regimento Interno do TCU reservou a um grupo seleto de autoridades públicas a prerrogativa de formular consultas (cf. art. 264). O Tribunal só pode exercer poder normativo em abstrato se e quando houver manifesto interesse de ente legitimado — isto é, quando houver incerteza jurídica acerca da interpretação mais consistente com o interesse público. Aqui, o pressuposto é o de que a atuação da Corte assume um papel colaborativo com a administração.

Se a agenda de desestatizações constitui o maior desafio do TCU em 2020 (cf. coluna anterior deste Observatório), consultas poderiam servir de mecanismo para uma gestão cooperativa entre o Governo e a Corte de Contas. Parece ter sido essa a ratio do então Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, quando, ainda em 2017, apresentou consulta ao Tribunal acerca da possibilidade de desfazimento de ações de classe especial, mais conhecidas como golden shares, em empresas em processo de desestatização.

O fato de a decisão final sobre a matéria ter sido tomada pelo plenário do TCU apenas em 12 de fevereiro de 2020 (j. Acórdão 284/2020-P), após dois pedidos de vista dentro da Corte e a sucessão de três nomes na chefia da pasta ministerial que formulou a consulta, é indício de que, na prática, a teoria pode ser outra.

Qual interpretação sobre a questão submetida teria condições de gerar mais segurança jurídica? Duas posições se formaram dentro do colegiado.

O ministro revisor Vital do Rêgo, de um lado, apresentou a visão de que a possibilidade de desfazimento das golden shares estaria condicionada a autorização legal expressa do Congresso Nacional, visto que a legislação não teria atribuído ao Executivo essa competência. De outro lado, o ministro Walton Alencar argumentou que a decisão sobre manutenção ou venda de ações de classe especial estaria dentro do espaço discricionário de decisão do Poder Executivo.

Enquanto o primeiro enfatizou que esse tipo de participação do Estado em empresas não se sustenta apenas em fundamentos de caráter financeiro e que, por isso, a decisão depende de lei, o segundo destacou o caráter transitório das golden shares, a necessidade de uma gestão dinâmica e o risco de diminuição do valor de mercado das empresas em decorrência da ingerência estatal.

Ao final, prevaleceu, por sete votos a dois, a primeira tese, de caráter mais formalista.

Se o Ministro da Fazenda, ao submeter consulta, pretendia agir de forma colaborativa com o Tribunal de Contas para gerar maior segurança jurídica à sua atuação, o próprio tempo que levou a tomada de decisão tornou inócua a estratégia.

A consulta não serviu aos propósitos daquele que lançou mão do instrumento, mas reforçou a centralidade do TCU em processos de desestatização. Para além de se manifestar de forma prévia em leilões e fiscalizar a posteriori contratações, a Corte de Contas também passa a exercer poder normativo de natureza abstrata sobre como as regras devem ser interpretadas por aqueles responsáveis por planejar, promover e gerir desestatizações.