Julgado recente do Tribunal de Contas da União (TCU) reforçou o entendimento de que, em processos que apuram condutas imputadas a empresas contratadas pela Administração Pública, cabe ao Tribunal o ônus da prova de eventuais ilegalidades e ao respectivo gestor público a obrigação de demonstrar a boa e regular aplicação dos recursos públicos (Acórdão 2544/2020-P, relator min. Bruno Dantas[1]).
Na oportunidade, em processo que repercutia operações policiais referentes a desvios por meio de empresas de fachada, avaliou-se a responsabilidade de empresa contratada para a construção de obra em município, haja vista que parte dos serviços pagos pelo ente público não teria sido executada. Assim, estaria ausente a comprovação do nexo de causalidade entre a execução dessas obras e os recursos federais repassados por convênio.
Contrariando o posicionamento da unidade técnica, o plenário da Corte decidiu que não caberia à empresa provar o nexo de causalidade entre a aplicação de recurso público e sua atuação. Nesse caso, a comprovação da correta aplicação dos recursos caberia ao convenente ou ao próprio Tribunal.
No entendimento do plenário, os atos de gestão propriamente ditos (praticados por gestores públicos, e não por fornecedores de bens e serviços) estariam relacionados ao imperativo constitucional de prestar contas (art. 70, parágrafo único, da CF/88) e, por consequência, submetidos à inversão ope legis do ônus da prova prevista no art. 93 do Decreto-Lei 200/1967 c/c art. 66 do Decreto 93.872/1986.
O mesmo não ocorreria com os indícios de irregularidades atribuíveis a empresas contratadas pela Administração Pública, apurados por meio de denúncias, representações ou fiscalizações da Corte de Contas – processos administrativos sancionadores em que o TCU funciona como instrutor-acusador e julgador. Nesses casos, a regra aplicável, segundo o TCU, seria a do art. 373 do CPC/15[2].
Assim, caberia ao próprio Tribunal, nesses casos, a demonstração dos fatos necessários à condenação dos responsáveis – isto é, dos fatos constitutivos da pretensão punitiva.
Apesar de o Tribunal já ter jurisprudência consolidada no sentido de que é ônus seu demonstrar ilegalidades na conduta de fornecedores do Estado[3], é estranho que a unidade técnica continue a sustentar opinião diversa, indicando “que a empresa contratada, revel, teria deixado de produzir prova da regular aplicação dos recursos sob sua responsabilidade”.
O caso sugere a necessidade de o Tribunal seguir zelando pela jurisprudência, especialmente quando processos envolverem, simultaneamente, gestores públicos e particulares contratados — situação em que, segundo orientação do próprio TCU, o ônus da prova deve ser distribuído de modo distinto.
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[1] Reforçando o decidido pelo Acórdão 901/2018-TCU-Segunda Câmara, relator min. José Múcio Monteiro.
[2] Reforçada pelas disposições dos artigos 36 e 37 da Lei de Processo Administrativo, Lei Federal nº 9.784/99.
[3] Há julgados nesse sentido desde 2014 (Acórdãos 5344/2014-1ªC e 901/2018-2ªC, por exemplo.
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GILBERTO MENDES C. GOMES – Pesquisador do Observatório do TCU da FGV Direito SP + sbdp. Mestrando em Direito Constitucional pelo IDP. Especialista pela FESMPDFT. Bacharel em Direito pela UnB. Advogado em Piquet, Magaldi e Guedes.
PEDRO A. AZEVEDO LUSTOSA – Pesquisador do Observatório do TCU da FGV Direito SP + sbdp. Bacharel em Direito pela UnB. Advogado em Piquet, Magaldi e Guedes.
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