O Superior Tribunal de Justiça julgou, em agosto de 2024, sob o rito dos recursos repetitivos, o REsp 1.908.738, leading case do Tema 1.122/STJ, referente a responsabilidade de concessionárias de rodovia pela passagem de animal doméstico na pista.
Naquela oportunidade, foi fixada a seguinte tese: “As concessionárias de rodovias respondem, independentemente da existência de culpa, pelos danos oriundos de acidentes causados pela presença de animais domésticos nas pistas de rolamento, aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei das Concessões”.
Concluído o julgamento, sem modulação de efeitos, diversos processos antes sobrestados voltaram a tramitar regularmente, com ampla aplicação da tese, promovendo a responsabilização de concessionárias por acidentes envolvendo animais silvestres e domésticos.
Contudo, apesar da aparente pacificação da matéria pelo STJ, a discussão jurídica sobre a responsabilidade das concessionárias ainda padece de uma solução definitiva. Isso porque a tese do Tema 1.122/STJ se limita, de forma expressa e concreta, aos animais domésticos, não abrangendo os silvestres.
Nesse sentido, destaca-se trecho relevante do voto do ministro Villas Bôas Cueva, relator do REsp 1.908.738, no qual se reforça a lógica da responsabilização especificamente quanto aos animais domésticos: “Por isso, não seria lícito afastar a responsabilidade civil das concessionárias e submeter a vítima de um acidente ao martírio de identificar o suposto proprietário do animal (…)”.
Para tornar mais clara essa diferenciação, é importante destacar que a distinção entre animal doméstico e silvestre encontra respaldo conceitual e normativo amparado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
De acordo com a Portaria Ibama nº 93/1998, atualizada pela Portaria nº 2.489/2019, compõem a fauna doméstica os animais que, por meio de manejo e melhoramento zootécnico, passaram a depender do ser humano, apresentando comportamentos e características distintas da espécie silvestre de origem. São exemplos: cães, gatos e cavalos — todos listados no Anexo I da referida norma.Já os animais silvestres são definidos como pertencentes às espécies nativas, migratórias ou quaisquer outras que tenham seu ciclo de vida em território nacional ou em águas jurisdicionais brasileiras. São exemplos: capivaras e onças, cuja criação ou manejo depende de autorização expressa do Ibama, conforme a Instrução Normativa nº 7/2015.
No contexto apresentado, ganhou destaque o REsp nº 2.220.144, oriundo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, no qual uma seguradora, em ação regressiva, buscou responsabilizar a concessionária de rodovia por acidente envolvendo animal silvestre.
O recurso traz à tona a necessidade de delimitação dos efeitos da tese do Tema 1.122/STJ, sustentando que a responsabilidade objetiva das concessionárias foi reconhecida exclusivamente em relação a animais domésticos, ou seja, nos limites do caso concreto que originou a afetação do tema.
Não se trata de caso isolado já que, anteriormente, também no âmbito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, nos autos do processo nº 0001677-25.2015.8.11.0045, foi corretamente afastada a responsabilização da concessionária de rodovia. Naquele caso, o acidente envolveu uma anta — animal tipicamente silvestre — o que justificou o afastamento da tese fixada no repetitivo.
Portanto, embora o STJ tenha apreciado recentemente o Tema 1.122/STJ, persiste lacuna relevante quanto à responsabilização das concessionárias no caso de acidentes causados por animais silvestres. Trata-se de cenário que deve enfrentado o quanto antes, visto que, na maioria dos casos, a responsabilidade tem sido aplicada de forma generalizada, com potenciais prejuízos ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão.
Diante disso, vislumbra-se como necessária uma possível reafetação da matéria, para que se discuta, com precisão, a responsabilidade (ou não) das concessionárias por acidentes causados por animais silvestres. Alternativamente, é possível cogitar a modulação de efeitos da tese, permitindo sua aplicação apenas a casos futuros ou condicionando-a à análise do caso concreto.
Por ora, aguarda-se o exame de admissibilidade do REsp 2.220.144, de relatoria do ministro Raul Araújo, da 4ª Turma do STJ, que poderá sanear a lacuna identificada. Ao fim, espera-se que a temática seja definitivamente enfrentada, à luz da distinção normativa entre as espécies e da segurança jurídica dos contratos de concessão.
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